ENCÍCLICA FAMILIARIS CONSORTIO
Papa João Paulo II, 22-XI-1981
(alguns tópicos)
Matrimônios mistos
78. O número crescente dos matrimônios entre católicos e outros batizados exige uma peculiar atenção pastoral à luz das orientações e das normas, contidas nos mais recentes documentos da Santa Sé e das Conferências episcopais, para uma aplicação concreta às diversas situações.
Os casais que vivem em matrimônio misto apresentam exigências peculiares, que se podem reduzir a três aspectos fundamentais.
Antes de tudo, considerem-se as obrigações da parte católica derivantes da fé, no que concernem ao seu livre exercício e a consequente obrigação de providenciar, segundo as próprias forças, ao baptismo e à educação dos filhos na fé católica.
É necessário ter presente as particulares dificuldades inerentes às relações entre marido e mulher no que diz respeito à liberdade religiosa: esta pode ser violada seja por pressões indevidas para obter a mudança de convicções religiosas do ou da consorte, seja por impedimentos postos à sua livre manifestação na prática religiosa.
No que diz respeito à forma litúrgica e canónica do matrimônio, os Ordinários podem usar amplamente das suas faculdades para as várias necessidades.
No tratamento destas exigências especiais é preciso ter em conta os pontos seguintes: na preparação própria para este tipo de matrimônio, deve ser feito um esforço razoável para proporcionar um bom conhecimento da doutrina católica sobre as qualidades e exigências do matrimônio, como também para se certificar de que no futuro não se verifiquem as pressões e os obstáculos, de que até agora se tem tratado;
é de suma importância que, com o apoio da comunidade, a parte católica seja fortificada na fé e ajudada positivamente a amadurecer na sua compreensão e na sua prática, de modo a tornar-se testemunha autêntica no seio da família, mediante a vida e a qualidade de amor demonstrado ao cônjuge e aos filhos.
Os matrimônios entre católicos e outros batizados, na sua fisionomia particular, apresentam numerosos elementos que convêm valorizar e desenvolver, quer pelo seu valor intrínseco, quer pela ajuda que podem dar ao movimento ecumênico. Isto é verdade de um modo particular quando os dois cônjuges são fiéis aos seus deveres religiosos. O batismo comum e o dinamismo da graça fornecem aos esposos, nestes matrimônios, a base e a motivação para exprimir a sua unidade na esfera dos valores morais e espirituais.
Para tal fim, e mesmo para pôr em evidência a importância ecumênica de um tal matrimônio misto, vivido plenamente na fé pelos dois cônjuges cristãos, procure-se – mesmo que nem sempre seja fácil – uma colaboração cordial entre o ministro católico e o não católico, desde o momento da preparação para o matrimônio e para as núpcias.
Quanto à participação do cônjuge não católico na comunhão eucarística, sigam-se as normas emanadas do Secretariado para a união dos cristãos.
Em várias partes do mundo nota-se, hoje, um crescente número de matrimônios entre católicos e não batizados. Em muitos casos o cônjuge não batizado professa uma outra religião e as suas convicções devem ser tratadas com respeito, segundo os princípios da Declaração Nostra Aetate do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre as relações com as religiões não cristãs; mas em muitos outros, particularmente nas sociedades secularizadas, a pessoa não batizada não professa religião alguma. Para estes matrimônios é necessário que as Conferências episcopais e cada bispo tomem medidas pastorais adequadas, a fim de garantir a defesa da fé do cônjuge católico e o seu livre exercício, principalmente no que se refere ao dever de fazer quanto estiver ao seu alcance para que os filhos sejam batizados e educados catolicamente. O cônjuge católico deve ser, além disso, apoiado em todos os modos no empenhamento de oferecer à própria família um genuíno testemunho de fé e de vida católica.
Ação pastoral perante algumas situações irregulares
79. Na sua solicitude pela tutela da família em todas as suas dimensões, não somente na dimensão religiosa, o Sínodo dos Bispos não deixou de prestar atenta consideração a algumas situações irregulares, religiosa e muitas vezes também civilmente, que – nas rápidas mudanças culturais hodiernas – se vão infelizmente difundindo mesmo entre os católicos, com não pequeno dano do instituto familiar e da sociedade, de que constitui a célula fundamental.
- a) O matrimônio à experiência
Uma primeira situação irregular é dada pelo que se chama «matrimônio à experiência», que hoje muitos querem justificar, atribuindo-lhe um certo valor. A razão humana insinua já a sua não aceitação, mostrando quanto seja pouco convincente que se faça uma «experiência» em relação a pessoas humanas, cuja dignidade exige que sejam elas só e sempre, o termo do amor de doação sem limite algum nem de tempo nem de qualquer outra circunstância.
Por sua parte, a Igreja não pode admitir um tal tipo de união por ulteriores motivos, originais, derivantes da fé. Por um lado, com efeito, o dom do corpo na relação sexual é símbolo real da doação de toda a pessoa: uma doação tal que, além do mais, na atual economia da salvação não pode atuar-se com verdade plena sem o concurso do amor de caridade, dado por Cristo. Por outro lado, o matrimônio entre duas pessoas batizadas é o símbolo real da união de Cristo com a Igreja, uma união não temporária ou «à experiência», mas eternamente fiel; entre dois batizados, portanto, não pode existir senão um matrimônio indissolúvel.
Ordinariamente tal situação não poder ser superada se a pessoa humana, desde a infância, com a ajuda da graça de Cristo e sem temores, não for educada para o domínio da concupiscência nascente e para estabelecer com os outros relações de amor genuíno. Isso não se consegue sem uma verdadeira educação para o amor autêntico e para o reto uso da sexualidade, de modo a introduzir a pessoa humana em todas as suas dimensões, mesmo no referente ao próprio corpo, na plenitude do mistério de Cristo.
Seria muito útil indagar sobre as causas deste fenômeno, também no seu aspecto psicológico e sociológico, para chegar a uma terapia adequada.
- b) Uniões livres de facto
Trata-se de uniões sem nenhum vínculo institucional, civil ou religioso, publicamente reconhecido. Este fenômeno – cada vez mais frequente – não deixará de chamar a atenção dos pastores, exatamente porque existindo na sua base elementos muito diversos, será possível atuar sobre eles e limitar-lhes as consequências.
Alguns, com efeito, consideram-se quase constrangidos a tais uniões por situações difíceis de carácter econômico, cultural e religioso, já que contraindo um matrimônio regular, seriam expostos a um dano, à perda de vantagens econômicas, à discriminação, etc. Outras, pelo contrário, fazem-no numa atitude de desprezo, de contestação ou de rejeição da sociedade, do instituto familiar, do ordenamento sócio-político, ou numa busca única de prazer. Outros, enfim, são obrigados pela extrema ignorância e pobreza, às vezes por condicionamentos verificados por situações de verdadeira injustiça, ou também de uma certa imaturidade psicológica, que os torna incertos e duvidosos na contração de um vínculo estável e definitivo. Em alguns países os costumes tradicionais preveem o matrimônio verdadeiro e próprio só depois de um período de coabitação e depois do nascimento do primeiro filho.
Cada um destes elementos põe à Igreja árduos problemas pastorais, pelas graves consequências quer religiosas e morais (perda do sentido religioso do matrimônio à luz da Aliança de Deus com o seu Povo; privação da graça do sacramento; escândalo grave), quer também sociais (destruição do conceito de família; enfraquecimento do sentido de fidelidade mesmo para com a sociedade; possíveis traumas psicológicos nos filhos; afirmação do egoísmo).
Os pastores e a comunidade eclesial serão diligentes em conhecer tais situações e as suas causas concretas, caso por caso; em aproximar-se dos conviventes com discrição e respeito; em esforçar-se com uma ação de esclarecimento paciente, de caridosa correção, de testemunho familiar cristão, que lhes possa aplanar o caminho para regularizar a situação. Faça-se, sobretudo, obra de prevenção, cultivando o sentido da fidelidade na educação moral e religiosa dos jovens, instruindo-os acerca das condições e das estruturas que favorecem tal fidelidade, sem a qual não há verdadeira liberdade, ajudando-os a amadurecer espiritualmente e fazendo-lhes compreender a riqueza da realidade humana e sobrenatural do matrimônio-sacramento.
O Povo de Deus atue também junto das autoridades públicas, para que, resistindo a estas tendências desagregadoras da própria sociedade e prejudiciais à dignidade, segurança e bem-estar dos cidadãos, a opinião pública não seja induzida a menosprezar a importância institucional do matrimônio e da família. E já que em muitas regiões, pela pobreza extrema derivante de estruturas socioeconômicas injustas ou inadequadas, os jovens não estão em condições de se casarem como convém, a sociedade e as autoridades públicas favoreçam o matrimônio legítimo mediante uma série de intervenções sociais e políticas, garantindo o salário familiar, emanando disposições para uma habitação adaptada à vida familiar, criando possibilidades adequadas de trabalho e de vida.
- c) Católicos unidos só em matrimônio civil
Difunde-se sempre mais o caso de católicos que, por motivos ideológicos e práticos, preferem contrair só matrimônio civil, rejeitando ou pelo menos adiando o religioso. A sua situação não se pode equiparar certamente à dos simples conviventes sem nenhum vínculo, pois que ali se encontra ao menos um empenhamento relativo a um preciso e provavelmente estável estado de vida, mesmo se muitas vezes não está afastada deste passo a perspectiva de um eventual divórcio. Procurando o reconhecimento público do vínculo da parte do Estado, tais casais mostram que estão dispostos a assumir, com as vantagens também as obrigações. Não obstante, tal situação não é aceitável por parte da Igreja.
A ação pastoral procurará fazer compreender a necessidade da coerência entre a escolha de um estado de vida e a fé que se professa, e tentará todo o possível para levar tais pessoas a regularizar a sua situação à luz dos princípios cristãos. Tratando-as embora com muita caridade, e interessando-as na vida das respectivas comunidades, os pastores da Igreja não poderão infelizmente admiti-las aos sacramentos.
- d) Separados e divorciados sem segunda união
Motivos diversos, quais incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações interpessoais, etc. podem conduzir dolorosamente o matrimônio válido a uma fratura muitas vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser considerada remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis.
A solidão e outras dificuldades são muitas vezes herança para o cônjuge separado, especialmente se inocente. Em tal caso, a comunidade eclesial deve ajudá-lo mais que nunca; demonstrar-lhe estima, solidariedade, compreensão e ajuda concreta de modo que lhe seja possível conservar a fidelidade mesmo na situação difícil em que se encontra; ajudá-lo a cultivar a exigência do perdão própria do amor cristão e a disponibilidade para retomar eventualmente a vida conjugal anterior.
Análogo é o caso do cônjuge que foi vítima de divórcio, mas que – conhecendo bem a indissolubilidade do vínculo matrimonial válido – não se deixa arrastar para uma nova união, empenhando-se, ao contrário, unicamente no cumprimento dos deveres familiares e na responsabilidade da vida cristã. Em tal caso, o seu exemplo de fidelidade e de coerência cristã assume um valor particular de testemunho diante do mundo e da Igreja, tornando mais necessária ainda, da parte desta, uma ação contínua de amor e de ajuda, sem algum obstáculo à admissão aos sacramentos.
- e) Divorciados que contraem nova união
A experiência quotidiana mostra, infelizmente, que quem recorreu ao divórcio tem normalmente em vista a passagem a uma nova união, obviamente não com o rito religioso católico. Pois que se trata de uma praga que vai, juntamente com as outras, afetando sempre mais largamente mesmo os ambientes católicos, o problema deve ser enfrentado com urgência inadiável. Os Padres Sinodais estudaram-no expressamente. A Igreja, com efeito, instituída para conduzir à salvação todos os homens e sobretudo os batizados, não pode abandonar aqueles que – unidos já pelo vínculo matrimonial sacramental – procuraram passar a novas núpcias. Por isso, esforçar-se-á infatigavelmente por oferecer-lhes os meios de salvação.
Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. Há, na realidade, diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram por salvar o primeiro matrimônio e foram injustamente abandonados e aqueles que por sua grave culpa destruíram um matrimônio canonicamente válido. Há ainda aqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o prece dente matrimônio irreparavelmente destruído nunca tinha sido válido.
Juntamente com o Sínodo exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança.
A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
A reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos atos próprios dos cônjuges».
Igualmente o respeito devido quer ao sacramento do matrimônio quer aos próprios cônjuges e aos seus familiares, quer ainda à comunidade dos fiéis proíbe os pastores, por qualquer motivo ou pretexto mesmo pastoral, de fazer em favor dos divorciados que contraem uma nova união, cerimônias de qualquer gênero. Estas dariam a impressão de celebração de novas núpcias sacramentais válidas, e consequentemente induziriam em erro sobre a indissolubilidade do matrimônio contraído validamente.
Agindo de tal maneira, a Igreja professa a própria fidelidade a Cristo e à sua verdade; ao mesmo tempo comporta-se com espírito materno para com estes seus filhos, especialmente para com aqueles que sem culpa, foram abandonados pelo legítimo cônjuge.
Com firme confiança ela vê que, mesmo aqueles que se afastaram do mandamento do Senhor e vivem agora nesse estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se perseverarem na oração, na penitência e na caridade.