O dom de si mesmo nos afazeres profissionais
(trecho extraído do livro “O dom de si” de Joseph Schrijvers)
A maioria dos homens vive no redemoinho do trabalho, empenhados numa luta sem tréguas pelo pão quotidiano. As suas ocupações absorvem-lhes toda a atenção, e podem chegar a ser tão numerosas e diversas que pareçam ultrapassar as forças da alma.
Nessa situação, a alma debate-se contra tal sobrecarga e mal consegue combinar a vida espiritual com tanta agitação. As ocupações, em vez de se deixarem penetrar pelo amor a Deus e ao próximo, pelo espírito de oração, muitas vezes abafam-no ou esmagam-no com o seu peso. A alma desamparada acaba por cansar-se e declara não ser feita para a vida de oração.
Ao entusiasmo e à febre do trabalho juntam-se as contrariedades provindas de pessoas bem-intencionadas, as dificuldades inerentes ao estado de vida e aos cargos que se ocupam. Os embaraços externos absorvem a atividade da alma, ressecam o coração e acabam por desgostá-la da vida interior.
Senhor, este é o perigo que me apavora. Quantos tenho visto esbarrarem neste escolho, encalhando ou perecendo miseravelmente! Será possível que nos tenhais chamado a uma intensa vida interior, ao ato de entrega a vós no meio dos nossos afazeres, e depois permitais que pereçamos? Os trabalhos empreendidos para agradar-vos hão de causar a nossa ruína? Senhor! Não o permitireis.
O perigo é sério, sem dúvida, mas não para os corações dóceis. As ocupações não são um fim, mas um meio, concedido à alma para que prove a Deus o seu amor. Devemos, pois, entregar-nos a elas, mas com sentido cristão.
Entre pessoas dedicadas a Deus, há as que se deixam arrastar pela acumulação cada vez maior de responsabilidades profissionais. Quem as força a tantos empreendimentos? Ninguém! Sentem-se atraídas pelo prazer que experimentam na sua atividade natural; falta-lhes energia para apertar o freio e ei-las arrastadas pela ambição, pela vaidade ou simplesmente pelo gosto de agir e de realizar-se!
Quem não conhece exemplos lamentáveis de fraquezas e até de indiferença pela religião, provocadas pela ambição imoderada no trabalho? E assim primeiro abrevia-se, e, depois, chega-se a suprimir a oração e os exercícios da vida interior.
O homem prudente, pelo contrário, lembra-se de que uma só coisa é necessária: o dom de si a Deus.
Quando, impelidos por alguma causa puramente natural, tivermos deslumbrado o mundo com o brilho do nosso saber e impressionado os sábios com as nossas profundas pesquisas; quando tivermos provocado a admiração e o reconhecimento dos povos pela relevância dos nossos serviços, não teremos dado a Deus tanta glória como lhe damos com um simples ato de amor.
A nossa vaidade ilude-nos. Não somos indispensáveis neste mundo. Deus pode governá-lo sem nós. Quando desaparecermos, os astros continuarão o seu curso no espaço, os impérios prosseguirão o seu destino, os povos continuarão a disputar o predomínio no cenário do mundo, o bem e o mal ainda viverão lado a lado, os justos hão de santificar-se e os maus perder-se. Por nós mesmos, como poderemos mudar tudo isso?… O nosso lugar na terra é reduzido, a nossa influência restrita, a menos que pertençamos de corpo e alma ao Senhor, que sejamos entre as suas mãos instrumentos completamente dóceis para santificar o mundo, que abdiquemos de toda a vontade própria e atuemos sob o impulso da divina Providência, que se digna utilizar-nos para alcançar os seus fins e colocar Deus e os ideais cristãos em todos os ambientes da terra.
Sendo assim, o nosso agir será calmo, por ser equilibrado; durável, por ser nobre de intenções; fecundo, por ser divino.
Mas muitas vezes Deus consente que a carga de trabalho ultrapasse as nossas forças e que, apesar de toda a nossa boa vontade, não consigamos terminar as nossas tarefas em tempo oportuno. Quantas almas têm ficado perplexas diante desse problema!
Pois bem, visto que as nossas ocupações são queridas por Deus, e não motivadas por simples impulsos humanos, Ele quer que apliquemos todo o cuidado no desempenho de cada uma delas. Feito isto, o nosso dever estará cumprido, pois Deus não nos pede um esforço angustiado e trepidante, antes pelo contrário, no-lo proíbe. Deseja somente ver-nos agir na medida das nossas forças, generosamente, sacrificadamente, mas sem que nos enervemos.
Entreguemo-nos, pois, à ocupação como se nada mais tivéssemos que fazer no dia. Trabalhemos diligentemente, energicamente, mas sem nos inquietarmos com a ânsia de terminar. Concluída a primeira tarefa, levantemos um instante os olhos para Deus e depois comecemos outra.
Deus quer ver-nos intensamente ocupados, não preocupados. Se houver obrigações que não possamos terminar no dia com a seriedade e a aplicação que o dever exige, permaneçamos em paz: a Vontade divina já foi cumprida nesse dia. Fizemos o que nos competia e o Senhor está contente. Recomeçaremos no dia seguinte.
Bem sei que os homens não julgam sempre assim e que até por vezes alguns chefes de empresa imprudentes exigem dos seus auxiliares mais do que o devido em justiça, e ainda manifestam descontentamento. Mas os sensatos nunca provocam nos seus subordinados semelhante perplexidade; não esquecem que as pessoas que estão sob as suas ordens são seres humanos, com uma família de que cuidar e uma vida interior que fomentar. O trabalho não é um fim, é só uma tarefa que corresponde à Vontade de Deus e que, vivida com critério sobrenatural, não pode impedir o cumprimento dos demais deveres de estado e da vida cristã.
Quanto à alma, a sua conduta é simples. Concentrará todas as suas energias no trabalho, mas sem inquietação ou desassossego. Se, por não ter terminado uma tarefa sem culpa sua, tiver de sofrer uma censura ou humilhação, acolherá essa pequena cruz como uma prova especial do amor de Jesus. A paz interior, a posse de si mesmo, bem valem o sacrifício do apreço e da afeição dos homens. A alma terá assim um duplo proveito: conservará a paz interior durante o trabalho e também na hora da humilhação. Em um e outro caso, renovará o dom do seu coração a Deus.
O certo é que uma alma de boa vontade pode sempre escapar desses perigos que ameaçam a sua vida espiritual. Deve recordar-se das palavras de Cristo: Não vos aflijais, pois, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos? Porque os pagãos é que se afligem com essas coisas. Quanto a vós, tendes um Pai nos céus e Ele sabe de que coisas precisais. Olhai para as aves do céu, que não semeiam nem ceifam […], e contudo o vosso Pai celestial as sustenta. Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo (Mt 6, 1 e 32). Eis a sabedoria do Evangelho, eis a doce voz de Jesus tranquilizando a alma.Nunca nos angustiemos, portanto; nunca nos deixemos inquietar pelas nossas ocupações, por mais urgentes e graves que sejam. Esmeremo-nos em conservar a serenidade em todo o nosso proceder. Que os nossos movimentos, o nosso andar, o nosso modo de falar sejam o reflexo de uma alma senhora de si. O nosso exterior reagirá de acordo com o nosso interior, e seremos sempre pessoas calmas e com domínio próprio.
Mesmo que tivéssemos o governo de um Império, esse cuidado não deveria fazer-nos perder a serenidade do coração, porque a nossa alma vale mais do que todos os reinos da terra. Jesus recusou a coroa que lhe ofereciam os judeus. Desprezou essa oferta sem valor, mas suplica-nos a nós que o façamos rei do nosso coração*.
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(*) O pensamento do autor deve ser completado com as maravilhosas perspectivas com que o Magistério da Igreja, especialmente a partir do Concilio Vaticano II, tem esclarecido a vocação e missão dos fiéis leigos.
Os leigos — os cristãos comuns — não se encontram no mundo como num difícil e obscuro lugar de passagem, onde deveriam encontrar e servir a Deus “apesar” das dificuldades que a vida no mundo apresenta para o exercício da espiritualidade e das virtudes cristãs.
Pelo contrário, a doutrina da Igreja, formulada principalmente no Concilio Vaticano II, apresenta o próprio mundo — isto é, as circunstâncias familiares, profissionais e sociais que constituem a vida dos homens e mulheres comuns no mundo — como o lugar privilegiado onde Deus está à espera dos cristãos leigos, oferecendo-lhes — justamente ali, bem no meio do seu trabalho e dos seus deveres cotidianos — a oportunidade real e constante de amar e de servir a Deus, de se santificarem — pois todos os batizados estão chamados à santidade — e de serem focos de irradiação cristã.
“É específico dos leigos, por sua própria vocação” — diz a Const. Lumen Gentium (n. 31) — “procurar o Reino de Deus exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no século, isto é, em cada um dos ofícios e trabalhos do mundo. Vivem nas condições ordinárias da vida familiar e social, pelas quais a sua existência é como que tecida. Lá são chamados por Deus para que, exercendo o seu próprio ofício guiados pelo espírito evangélico, a modo de fermento, de dentro, contribuam para a santificação do mundo”.
As ocupações e trabalhos no mundo, as tarefas e profissões nobres e limpas, são âmbito e meio para a santificação e o apostolado dos leigos. Eles, os leigos, não “estão” apenas no mundo, mas foram “colocados” nele e a ele “enviados” por Deus. O mundo é o lugar onde Deus quer que realizem plenamente a sua vocação e a sua missão.
“Assim — afirma João Paulo II —, para que possam corresponder à sua vocação, os fiéis leigos devem olhar para as atividades da vida cotidiana como uma ocasião de união com Deus e de cumprimento da sua vontade, e também como serviço aos demais homens, levando-os à comunhão com Deus em Cristo” (Exort. Christifideles laici, n. 17).
Esta é a doutrina que, desde 1928, pregou e levou a tornar-se realidade em muitas vidas o Bem-aventurado Josemaría Escrivá, Fundador do Opus Dei, universalmente reconhecido como um dos grandes precursores do Concilio Vaticano II nestas questões centrais sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja.
“Deus nos espera — dizia o Bem-aventurado Josemaría — cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçam nunca: há algo, de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir […]. Quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo de onde transborda a transcendência de Deus”.
Com efeito, Deus chama o cristão leigo a viver com amor, com perfeição e pela prática de todas as virtudes cristãs, o trabalho e os outros deveres cotidianos, por insignificantes que pareçam; e é assim que é levado à maravilhosa aventura de “viver santamente a vida diária” (Questões atuais do cristianismo, ns. 114 e 116) (N. do E.).